quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Hora da morte 12:26

Foto/Reprodução: Instagram

Abri os olhos: Consultório 04 senha 252. Ainda não era a minha vez. Nem daquela senhora que acabara de estatelar-se no chão quatro filas de cadeira à minha frente. 57 pessoas presenciavam o espetáculo da vida em decadência. Já ouvi por aí que não há dignidade na morte, pesquisei e descobri algo chamado "Constitucionalidade da Morte Digna", mas de que vale a Constituição, se nem vida digna ela garante?

Poucos minutos antes eu pensava sentada e infeliz, o meu número ser chamado no painel de procrastinação da morte: Aquele garoto com um anel de cada cor em três dedos da mão, tenho certeza que em dois anos será traficante. Aquela de macacãzinho de veludo roxo, aposto como só está fazendo manha pro namorado. E esse casal senil que me desperta nojo, também ainda me causa piedade. Ela tão gordinha e ele tão magro. Ambos mal vestidos. A botina dele despejava terra no saguão do hospital e eu maldosamente pensava: Pobres, tão pobres, como podem ter um plano de saúde? Será que são os filhos que pagam para eles? Porque definitivamente eles já não podem trabalhar nessa idade, ou pelo menos não deveriam, pensava eu com um pouco de benevolência que ainda me restava pelo próximo. Cansei de observar o mundo. Ainda faltam 30 números pra que eu seja chamada, vou me permitir cochilar.

Senha 252 no painel e o médico que chamara esse indivíduo que atende pelo nome de 252 veio ao saguão ver porque ninguém entrava. Todos apáticos, apenas uma garota de aproximadamente 24 anos veio ao encontro do médico pra dizer-lhe que uma senhora acabara de desmaiar. Secretárias, faxineiras, enfermeiros, seguranças, ninguém se mexia. Apenas o senhor que derramava terra no saguão correu para socorrer a mulher que caira de bruço no chão. Eu acabava de abrir os olhos, estava com preguiça de interagir, respirar... e principalmente de observar o que acontecia, mas não pude deixar de perceber aquele velho médico, cabelos brancos mas pele lisa, olhos claros e gordo com olhar cansado, blasé e amargo balançando a cabeça e olhando no relógio sem emitir som: Hora da morte 08:55.

Passava "As aventuras do Pinóquio II" na TV e eu não sabia qual era a maior das mentiras naquele dia: se era eu escrevendo este texto fingindo que me importava, se era as manhas da garota de macacão roxo que realmente podia estar doente ou se era aquela senhora fingindo de morta pra chamar atenção e finalmente ser atendida.

Consultório 01 senha 264. Só me resta dormir. O tempo não passa, já são 10:35. Minha cabeça dói. Foi por isso que vim aqui. Mal consigo abrir os olhos. O mundo é muito feio e agride minhas retinas... Ainda faltam 18 números para serem atendidos. Me deixo dormir e espero que ninguém desmaie novamente pra chamar atenção e atrapalhe meu sono.

Eis que finalmente eu fui atendida, e como já dizia uma amiga minha: "eles não estão nem aí com a hora da sua morte, muito menos com a sua doença." Passei exatamente quatro minutos na consulta em que o médico sequer tocou no meu corpo. Sim, a consulta não durou nem 1% do tempo despendido naquele hospital. A única certeza com a qual saí daquele consultório é de que eu deveria esperar mais alguns instantes no saguão para ser medicada. Como sei que vai demorar, me permito dormir mais um pouco para não ter que observar que aquela menina de 12 anos tão magra já deve ter anorexia pelos padrões difundidos pelo "Beautiful way of life".

Inferno! Tum tum tunturum tum tum tunturum... que assovio frio... Quem inventou e disponibilizou músicas temas de filme para toque de celular? Ou melhor, por que esse infeliz não colocou o celular no silencioso? Estamos em um hospital oras... Eu acordei gelada com uma dose de adrenalina e a primeira imagem que vinha na minha cabeça era de uma enfermeira loira, gostosa, cabelos lisos, como essas dolls que se vê aos montes na rua hoje em dia, todas com mesmo número de fabricação e mesma quantidade de formol dizendo 282 com uma voz sexy.

Finalmente despertei com o barulho de passos. Eu estava sentada na última fileira e atrás de mim havia um corredor vazio que o simples bater de asas de um mosquito podia emitir eco. Toc Toc o barulho do salto alto ecoava na minha cabeça e não mais no corredor. Lembrei, então, que eu já estava há meia hora na fila de medicação. Ainda doía minha cabeça, mas a adrenalina de acordar com The Killer's Song era tanta que eu só podia imaginar que poderiam injetar vaselina em vez de dipirona mais decadron na minha veia.

O painel de medicação mostrava meu nome: 282, olhei no relógio e já eram 12:26.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A colheita

Não há escolha sábia das uvas para o melhor vinho. Processos mecanizados na produção do vinho não fazem diferença no tilintar de uma noite fria... Nem sempre as mais belas uvas servem o mais fino vinho.

A colheita ja é, na verdade, uma etapa posterior a várias outras etapas iniciais, como o preparo de si próprio, a escolha do terreno a se frequentar... Você colhe e coleciona figurinhas e monta seu próprio "ideal". A partir deste ideal, seleciona possíveis videiras onde encontrá-lo. Mas nem sempre as melhores uvas produzem o melhor vinho. Há tantas etapas e transformações envolvidas que você não pode controlar... e quando menos espera está entorpecida e flutuando com um vinho barato ou com um gosto de guarda-chuva na boca com um Cheval Blanc 1947.

Dizem que como a uva possui enorme influência sobre o sabor do vinho, a colheita precisa ser feita no tempo certo. Uma colheita prematura resulta em um vinho aguado, com baixa concentração de álcool enquanto uma colheita tardia, produz um vinho rico em álcool, mas com pouca acidez. Qual é o tempo certo? O solo há ainda de influenciar nas uvas, e por consequência no vinho...

Sim, você tem acesso a bons vinhos procurando por marca e safra. Mas a quintessência do vinho depende mais do que sua escolha, mais do que um processo perfeito de fabricação. A quitessência está muito mais relacionada a ser escolhido, a se deixar entorpocer e se envolver numa química que você próprio não explica e que nenhuma análise laboratorial minuciosa seria capaz de desvendar.

E assim é, você procura a perfeição mas descobre que a perfeição é monótona. A paixão realmente lhe pega pelos defeitos, descobre que é a acidez do vinho que o faz gostar do doce do vinho. Porque se o vinho fosse apenas doce, em apenas um copo você enjoaria. Descobre que a pressa estraga tudo...estraga o gozo, estraga a espera. Um vinho aberto antes da hora não embebeda, uma uva colhida antes da hora não fermenta... Um vinho passado do tempo vira vinagre, amargo como lembranças engavetadas de uma história que jamais pode ser.

Enquanto o vinho está confinado em barris e você não tem o poder de escolha, resta embriagar-se com outras bebidas pra que o copo não fique vazio. Você experimenta enquanto isso marcas chulas, vinhos que não entorpecem, outros apenas pelo rótulo... Enquanto o tempo não lhe permite tomar o vinho certo as coisas são mais fáceis. Duro é a hora de virar o último gole ou abrir a primeira garrafa. Girar o vinho na taça e sentir seu aroma... ah! a espera... Fechar os olhos e aos poucos virar aquela taça que você saliva de imaginar o sabor nunca provado... Enfim toca sua língua, e nesse momento você descobre que não pode mais viver no mundo real. Bem-vindo ao mundo de Dionísio...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Ferro e Fogo

Foto/Reprodução: Instagram

Analice tinha duas referências de amor, a primeira e a segunda. A Primeira dos olhares que se cruzavam na rua aos beijos, aos meses que se passavam descobrindo um ao outro. A Segunda foi da tentativa ao erro, por não haver mais descobrimento de si mesma, mas só descobrimento de um ao outro para o desencantamento.

Depois de alguns anos de namoro, Analice sentia o amor por todos os cantos. Com o tempo, o encantamento passou a ser admiração. E a Primeira se findou quando o amor, aos pedaços, que não tinha mais a intensidade do começo, deu lugar à curiosidade de conhecer casas diferentes, casas que pudessem ter uma lareira que não se apagasse e que não precisasse de trabalho para mantê-la acesa eternamente.

Analice saiu de casa por livre e espontânea vontade e colocou-o pra fora porque ele havia fechado as janelas e ela não conseguia mais enxergar como seria o mundo lá fora. Saíram ambos de casa e ela o negou até então, incomparável por falta de outras referências. Decidiu procurar o seu oposto porque da rotina restaram algumas mágoas e o inconsciente a conduziu ao contrário de seu início na esperança de encontrar, também, o oposto de seu fim.

Ela guardou seus defeitos bem nítidos para evitá-los e muita lenha pra queimar em outra lareira. Mas era tola ilusão. Toda vez que entramos numa casa deixamos nossos olhos do lado de fora nos esperando. Vivemos o tempo todo observados por nós mesmos sem perceber.

Lá estavam seus olhos observando o desenrolar do primeiro ciclo que ia se estabelecendo na medida em que ela ia entrando em conflito e vice-versa. A lareira começou a se apagar e ela não conseguia ver o que estava acontecendo de fato. Ela saiu com um punhado de cinza na mão. Seus olhos que tinham visto tudo de fora, guiavam-na numa linha nítida e reta que a levava ao extremo. Enquanto ela se recuperava, os pés pisavam o caminho projetado pelos seus olhos. Antes que ela terminasse de se recuperar, ela sentou numa porta pra descansar. Abriram-na e ela caí ali dentro sem saber muito bem onde estava. Havia uma lareira imensa, ela resolveu ficar porque estava muito frio lá fora.

Era como se seu teto caísse causando uma angústia provocada por sufocamento. Mas a sensação deveria ser um vazio porque ela não tinha mais casa. Essa Segunda foi mais uma doença que amor, ela ficou cega porque a lareira não se apagou e o amor que deveria estar espalhado pela casa estava concentrado em dois pontos móveis. Quando um entrava o outro saía. Na luz do dia percebiam seus defeitos e na escuridão da noite tornavam-se iguais. Tão preocupados consigo mesmos. E o Segundo se foi quando depois de tanto brincarem com fogo, alguém se queimou e jogou água na brasa do outro. Dessa vez carregava as cinzas do Primeiro e as mãos queimadas na brasa do Segundo.

Pegou seus olhos que a estavam esperando do lado de fora novamente, ele a mostrou dois caminhos que levavam a um paradoxo. O oposto do Primeiro e o oposto do Segundo e qualquer um dos dois que ela seguisse a levaria novamente a mesma casa que não seria nem o oposto de um e nem de outro. Resolveu então negar os dois, e pra negá-los, ela precisou negar o amor. Caminhou sem perder tempo construindo uma nova casa por onde passava. Era muita casa pra pouco amor. Um dia cansou de andar, por pra fora, sair de casa e ter sempre um acampamento nas costas. Resolveu aceitar as duas formas como suas e não mais como pessoas distintas na sua casa. A casa agora era ela própria, onde haviam habitado o Primeiro e o Segundo.

Resolveu que queria viver como na primeira casa. Bateu na porta do Primeiro, e por espanto, ela se abriu, ela entrou e a lareira continuava apagada. Faltavam alguns móveis na casa, havia decoração diferente. Ah sim, claro, não era a mesma casa, cada um levou o que era seu quando saíram. Quando voltaram para casa ambos haviam deixado pedaços de si em outras casas e trazido um pouco delas também. O Primeiro como terceiro era um erro, jamais projetaria a primeira casa. Saiu de casa de novo. Mas dessa vez carregava as cinzas do Primeiro, as cinzas do Segundo e a culpa, culpa de que agora não era possível viver nenhum e nem outro. Passou a caminhar se perguntando qual das duas maneiras seria a mais correta pra tentar encontrar o mais próximo. Não obtinha respostas.

Descobriu que precisava apenas acreditar no amor novamente, independente de formas ou experiências. Era só esperar acontecer novamente.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A Misteriosa Máquina Humana

Um peso enorme pairou sobre minhas costas e meu corpo começou a ficar dormente. Percebi que ia ficar imóvel, na verdade já estava. Fazia uma força imensa pra me mexer, mas era impossível, era como se houvesse toneladas em cima de mim, não pesava, mas me tornava imóvel. Lutava entre dormir e acordar, estranhamente tentei me entregar ao sono e também não consegui.

O desespero foi tomando conta da minha mente a partir do momento em que percebi que eu não podia controlar meu corpo, que podia sequer obedecer a minha própria vontade. E nesse momento eu precisei lutar comigo mesma, ou com aquela energia que tentava me fazer sucumbir.

Podia ser um sonho ruim, mas eu estava consciente. Quando consegui recobrar o autocontrole, ou pelo menos, a sensação de perceber e modificar o que estava acontecendo comigo, notei que meu coração estava mais acelerado do que o de costume, aliás de uma forma que me assustava. Demorou um pouco, mas eu respirei fundo, calmamente, para que meu coração voltasse a bater na velocidade "normal". E foi neste momento que percebi que ainda não podia me mexer.

Pânico! Eu precisava me acalmar ou meu coração dispararia novamente. Eu precisava me mexer mas forçar meu pensamento para comandar o corpo a fazer isso desviava minha atenção do coração e eu tinha medo que ele saísse correndo novamente.

Percebi nesse dia que eu não era capaz de controlar meu próprio corpo e que se dependesse de mim todo o sistema entraria em colapso, porque eu não saberia controlar todos meus órgãos ao mesmo tempo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Olhos recicláveis

Foto/Reprodução: Instagram

Mesmo tendo habituado meus olhos a verem só o que eu quero, às vezes me escapa o filtro, e acabo vendo aquilo que todos fazem questão de não enxergar: os homens invisíveis, as crianças invisíveis, as mulheres invisíveis. Estes só tomam forma quando lhe roubam o sossego ou por um descuido do olhar...

17:45, dia ainda claro, uma rua do Itaim Bibi... Pela calçada a maioria dos homens estavam engravatados e as mulheres de tailleur. Pela rua passavam alguns carros populares e muitos carros de luxo. Um dia normal, num lugar cotidiano...

Estava parada num ponto de ônibus, prestando atenção nos carros que vinham, meio zonza com o movimento até que um utilitário torto, desbotado, fazendo barulho parou ali. Saltou dele um garoto magrelo, moreno, muito magro, com movimentos bruscos dos membros e um chinelo escorregadio no pé, talvez uns quatro números maior que seu pé... me causava repulsa... e só.

Aquela cena me incomodava... destoava... mas logo passou... depois de recolher todas as caixas de papelão que estavam no lixo, com os mesmos movimentos bruscos, o chinelo torto e a camisa furada, o garoto entrou no utilitário, bateu a porta e com um arranco saiu dali.

Pisquei os olhos e o filtro se instalou novamente... continuava a esperar o ônibus que veio em alguns minutos...

Entre uma Santa Fé, uma Vera Cruz, um Audi Q7 e uma BMW M3, lá estava a chevrolet C10 1970 com uma carroceria de madeira, desta vez com o muleque torto em cima dela, dobrando os papelões que outrora jogou ali dentro.

E agora já não me causava repulsa... mas indginação.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Autossabotagem

Foto/Reprodução: Instagram

Nessa busca infinda por equilíbrio, tentei muitas vezes encontrá-lo, não fui bem-sucedida, me desequilibrei... Não era o que eu buscava... Parece que eu preciso viver nos extremos. O equilíbrio é que me entristece. Seja triste ou seja alegre, tudo que eu tenho certeza é que precisa ser intenso. Porque o que nos faz sentir vivos é a tensão, a dor de estar vivo.

E ainda nesse caminho do meio termo, muitas vezes me perdi nos outros, pelos outros, pelos meus objetivos, no mundo... Deixei de ser simples, deixei de ser humana e principalmente fraca... deixei de apreciar as coisas mais simples, as que possivelmente me trariam a felicidade, porque quando eu acabar de construir meu castelo... o que vai me faltar senão outro castelo sem utilidade?

Mas quando me olho no espelho às vezes vejo você e me pergunto... Onde você estaria? Quem seria você? Será que nunca aconteceria mesmo? Se a arte imita a vida por que nunca me aconteceu um fato inusitado? Sim, talvez aconteça todos os dias... Tudo está na forma de ver o mundo... E para construir meu castelo, antes de tudo eu construí um muro para que ninguém me atrapalhasse... Será que seria tarde demais derrubar o muro e construir uma grade pela qual eu possa ver o mundo e as pessoas possam ver meu sucesso depois que eu terminar o castelo?

Enquanto isso, você está anos a minha frente, já fez o mesmo percurso que eu ainda estou fazendo... No dia mais improvável você cruza meu caminho, eu estou totalmente despreparada e você me mostra que ainda sou frágil... Despe-me de mim mesma e me mostra quem eu realmente sou, ou melhor, que eu ainda posso ser quem eu quiser, até mesmo quem eu sempre fui... A sua aparência é contraditória e sólida enquanto a minha contradição está em construção. E apesar dessa cortina que você jogou em cima de si mesma, eu consigo enxergar dentro de você e me sinto segura, eu posso sentir quem você já foi, da mesma forma que você me mostrou que sou fraca... Eu estou seguindo o mesmo caminho e estou com medo. É como se agora, se você me desse a mão eu devesse continuar essa estrada árdua e se não, eu devesse derrubar o muro e deixar que as pessoas viessem me ajudar e quem quisesse atrapalhar que ficasse à vontade, pois eu não tenho mais tempo a perder.

Atualmente estou me perguntando até que ponto vale a pena deixar de ser eu mesma para construir meu castelo... Na verdade me sinto um pouco cansada de tudo isso... Sinto medo de meus objetivos não serem de fato o que eu realmente busco, ou mais que isso, que minha busca não é o que me trará felicidade...E descubro que você já tem seu castelo e, mesmo assim, ainda procura a felicidade todos os dias...

Além do muro eu tenho seguranças que no risco iminente do encontro comigo mesma, me preparam uma cilada para que eu faça tudo errado para eliminar qualquer possibilidade de envolvimento. Na berlinda entre a autossabotagem dos meus sonhos ou das minhas metas... Já estou no piloto automático, continuo com as minhas metas cada vez mais ousadas... O silêncio entre nós não incomodava, no fundo revelava quem realmente somos...

... o mesmo ser humano.