quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Rue de La Fortune

Foto/Reprodução: Instagram

Brasileira foi internada na França por alucinações. Será deportada em 15 dias, visto não ter nenhum conhecido ou parente próximo neste país. Se alguém conhecê-la, contate o serviço de imigração. A senhora afirma ter reencontrado naquele lugar um velho amigo de adolescência a fim de se casarem. Testemunhas afirmam que a mesma estava bêbada abordando um famoso escritor italiano no Café Les Deux Moulins.

Naquela tarde fazia frio. Mas não era somente um frio ambiente, estava congelada por dentro. A impotência diante do tempo.
Viver ali há cinquenta anos longe de todos não era fácil. Mas naquela idade em que se encontrava, não havia mais nenhum conhecido vivo no Brasil, além de seu irmão caçula que também já estava por falecer.
Todas as tardes ela caminhava até o Café, sentava-se na mesa e começava a ler. Entre as páginas que ela passava podia-se notar as lágrimas que escorriam e manchavam o papel amarelado. País gélido. Ninguém se incomodava com suas lágrimas. Ninguém perguntava se ela estava bem, apenas se desejava algo mais. E se ela pudesse pedir algo, seria uma dose de lucidez ou como tantas noites em casa já havia ligado no delivery, pediria um abraço.
O que a mantinha viva naquele lugar era se agarrar todos os dias ao que o resto do café podia lhe dizer no fundo da xícara. Ela ainda tinha forças pra se alimentar. Os flocos de neve eram como as gélidas lembranças que vagueavam sua memória. Era o que a mantinha viva. A existência do que já fora. O passado era tão distante. Por vezes ela tinha o devaneio de tentar descobrir em que lugar da Itália morava seu escritor brasileiro preferido. Ela se encontrava descrita nos seus textos. Era outro fato que a fazia sentir-se viva, menos sozinha no mundo. Devaneios... mas que a faziam respirar, e no mais dos tempos, suspirar!
Domingo. Cinco da tarde. Nos seus tempos de adolescente ela assistiria qualquer programa da TV brasileira e criticaria. Numa fase mais madura assistiria filmes. E mais pra frente, se tivesse os tido, levaria os filhos pra passear no parque. Logo, hoje, ela também não leva os netos que não teve. E, por isso, todos os dias ela se questionava nesse Café: Por que não ter sido trivial? Ao menos não estaria aqui sozinha me agarrando às fantasias até hoje...
Há tanto tempo ela não sentia tanto frio. Aquele parecia ser o dia mais frio de toda sua vida no continente europeu. Quando a porta do café se abriu e entrou um senhor de sobretudo marrom, meio curvado com uma pasta na mão ela não sentiu apenas o frio na pele. Ela sentiu um frio dentro de seu ventre. O café ficou mais doce, porém mais gelado. E o doce que já era doce chegava a ser enjoativo. Ela não saberia descrever aquela sensação como nunca soube descrever o que sentira por aquele homem a vida toda.
Ele se sentou numa mesa frente a ela. Mas era como se a não percebesse. A mulher da cafeteria abrira a janela e pequenos flocos de neve invadiram o espaço. Por alguns instantes acreditou que o vira. Sim! Ele! O detentor de suas maiores fantasias da adolescência. Mas logo percebeu que os flocos de neve eram apenas geladas lembranças de uma história que nunca havia ocorrido no plano real, apenas nos contos, nos poemas, nas crônicas. Mas eles estavam ali, aos 70 e poucos anos, será que não era a hora?
Ela se perguntava até que ponto era real sua paixão por aquele escritor. Ela tentava reviver na sua memória, a sua adolescência. E se aquele escritor de fato era aquele jovem com quem trocara tantas licenças poéticas. Teve certeza, hesitou, até que em um momento pode perceber que ele a olhou com olhar assustado e ao mesmo tempo incerto.
Ela tomava seu café e fitava-o. Ela mal acreditava, não podia ser... depois de tanto tempo, tantos planos. Quando moravam no Brasil marcaram dezenas de encontros e não conseguiam se ver. Seria possível o melhor acaso de sua vida? Seria tudo tão poético assim? Tão profético? Ou tão trágico... Ela não se conteve e foi conversar com ele. Ele não a reconhecia. Ela insistia.
Ele jamais a esquecera e por várias vezes tentara encontrar seus passos, enviar-lhe cartas, mas tantas tinham sido as mudanças na vida de ambos, que ele preferiu mantê-la em seus textos. Nos textos que ela lia e se sentia viva. Ele também não queria acreditar naquele instante, não podia admitir isso. Por que só agora aos setenta anos e tão longe do Brasil?
Ele gostou da idéia de não reconhecê-la e ouvi-la contar todos seus devaneios, todos seus encontros e desencontros. Aquela explosão de sentimentos da velha amiga inflava seu ego apodrecido pela falta de amor. Ela tentava convencê-lo mais convicta de que seu nome era Ana que o dele era Cadu. Ela munia-se do espírito adolescente de outrora e contava-lhe em pormenores com todo entusiasmo os seus planos e suas lembranças:
Ana: Sim! Era um dia tão frio quanto esse... era o máximo de frio que podia fazer no sul de Minas Gerais... o Brasil não era tão tropical assim a primeira vez que subimos ao Parnaso... A Perséfone sentia algo por Hades que ela não conseguia explicar. Era inverno. Era com ele que ela deveria estar, assim como hoje, mas a Primavera sempre os separava... Você não se lembra?
Ele apenas sorria e continuava a escrever no seu bloco de anotações. As pessoas ao redor cada vez mais notavam o descontrole de uma senhora de 70 e poucos anos que começava a se portar como uma garotinha de 15, tamanho entusiasmo...
Ana: Por que você não diz nada?
Cadu: Porque eu não sou quem você está pensando.
Ana: Claro que é. Aliás, porque você nunca publicou nossas cartas como havíamos combinado assim como os contos?
Cadu: Porque eram...
Ana: O quê? Viu! Você é quem eu estava esperando!
Cadu: Minha cara senhora, tente se acalmar, devo ser muito parecido com esta pessoa que está falando, mas acredite, eu sou inglês, moro na Itália há dois anos e jamais estive no Brasil, muito menos na minha adolescência.
E ele sorriu. E não pense que foi um riso de “você é louca”, mas sim um riso de “sim, eu estive lá, me lembro muito bem e não acredito nesse momento, não acho justo.”
Ana: Sim! Eu me lembro muito bem da primeira vez que o vi. Eu tive uma impressão tão torta de você! Você parecia querer chamar a atenção de todo mundo. E eu parecia querer chamar sua atenção mesmo que não devesse. Não sabia bem porque queria, se era porque você estava roubando a minha cena ou porque a sua atenção era o que me importava. Enfim, não faria diferença, as condições não eram propícias. Mas estamos aqui aos 70 e poucos anos como planejamos em tantos devaneios poéticos.
Cadu: Que livro está lendo? Deixe-me ver?
A mão trêmula dentro de uma luva grossa, que impediu o toque das peles tão esperado, entregou o livro.
Cadu: Você quer um autógrafo? Aqui está uma dedicatória para você na última página.
Ana: Por que na última página? Não importa.
Balançava a cabeça de um lado para o outro apoiada com os braços na mesa e batendo os pés no chão, aumentava também seu tom de voz:
Ana: Eu quero que você admita que é o mesmo Carlos Eduardo que conheci há 55 anos. Não sei por que está me torturando dessa maneira.
Ela não entendia aquela indiferença. Eles estavam ali por um acaso. Todas as escolhas que haviam feito durante mais de 50 anos não importavam mais.
Ela não se conteve a mais uma implosão. E como na primeira vez que o vira, quis chamar a atenção de todos. Era indecoroso para uma senhora daquela idade, mas ela chutava as cadeiras, derrubava as mesas e arremessava os copos contra a parede. Dentro de minutos ela foi levada por perturbar a ordem pública. Foi constatado que ela sofria de alucinações.

Como ela não tem parentes nem conhecidos nesse país, o governo francês a deportará para o Brasil, seu país de origem, aproveitando a passagem encontrada dentro do livro que carregava.

Desistiram do café e depois de poucos minutos, a segunda garrafa de vinho já havia acabado. Seus olhos se cruzavam com mais doçura e desejo a cada gole. As mãos trêmulas se tocavam e os olhos pesados da idade se fitavam enchendo-se de vida novamente.