quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Risque outra vida

Foto/Reprodução: Instagram

Riscou seu último fósforo pra acender o cigarro. A angústia da espera. Fumava aquele cigarro como se quisesse engolir o mundo. Uma fome desesperada de viver tudo como se fosse a primeira vez. Brasa e cinzas na ponta de seus dedos que não podiam mais desenhar o futuro. Na brasa, a esperança. Na cinza, o tempo perdido.

Tudo ali fora estava calmo, pensava que por isso deveria estar em paz também. Mas não funcionava assim. O determinismo não era uma regra, por mais determinado que quisesse ser. Implodiu a fumaça no peito. Faltou-lhe ar pra soluçar. Faltou-lhe lágrima. Faltou-lhe tudo. As cinzas não se desprendiam do cigarro. Eram inertes à gravidade. Não sabia pra onde ir... Só um nó na garganta.

Tragava na esperança de preencher o vazio da alma. Era tarde. Faltava fogo em casa. Ascendia um cigarro no outro. Faltava calor. As lembranças o consumiam. O amor acabou. A dor um dia também se foi. A dor deixou saudade. A saudade trouxe esperança. Esperança trouxe sonhos. Sonhos remetiam ao passado. Entregava-se ao vício de fumar.

Sabia que ainda estava vivo porque sonhava. Mas estava cansado de viver de sonhos. Sentia-se perdido no limbo. Ou vivia o ontem, ou vivia o amanhã. O presente jamais existia... Cultivava a ideia de que éramos frações um dos outros. Enxergava-se cheio de falhas. Sempre incompleto. Custou a aceitar que tudo era finito e eterno. Entendeu que só seria completo pelas lembranças que carregava. Desistiu de esquecê-las. Era impossível.

Tragava. Prendia. Expirava. A fumaça dissipava. Mas fica o cheiro, o gosto, os dedos amarelos. Desistiu de suspirar. Jogou o maço de cigarro fora. Respirou fundo e resolveu caminhar com o relógio até que a brasa cessasse. Carpe diem1!

1. Expressão latina popularmente traduzida como "colha o dia" ou "viva o momento".

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Sobre qualquer Coisa

Foto/Reprodução: Instagram

Coisa: A palavra mais vazia de significado e mais plena de sentidos.

Não menospreze os acasos, a dúvida que gera o erro geralmente é o que mais nos excita.
A vida é isso aí, dói, deixe-a ser. É uma corda solta.
Numa ponta, a saudade. Na outra, uma ponta de desejo.
Salte pra qualquer sorriso que lhe cause arte...

Nunca faça algo esperando retorno, isso não é bondade, é vaidade!
Não queira transformar ideias em realidade, sua vida só será um plágio mal feito delas.
A ansiedade é a medida do desencantamento, estraga a espera.
Espera! A sorte é o cuidado dos detalhes...

Ando com vontade de usar flores atrás da orelha. De andar com passos leves...

Viva a morte

Foto/Reprodução: Instagram

Tinha medo da morte. Não da morte em si. Mas dos segundos de consciência que a antecediam. Percebeu que estava ficando velho quando se preocupava mais com seus pais do que seus pais com ele. Preocupou-se por não ter filhos. Assustou-se quando os pais de seus amigos começaram a morrer, a consciência lhe mostrou que seus pais não eram heróis, muito menos imortais.

Mas o que poderia fazer com o tempo? Amanhã acordo com 70 anos - pensou. E só tinha 26. Tudo passava rápido demais. Seu primeiro luto foi aos nove anos. Avô materno. Não sentiu muito. Desconhecia o que era a morte. Na inocência da infância era apenas uma saudade perpétua. Aos 16, veio seu segundo luto. Seu padrinho de batismo. Com esse veio a lágrima. A lágrima de culpa, da certeza de impotência perante o tempo. Da incapacidade de mudar o passado, da impossibilidade de pedir perdão aos mortos.

Na adolescência a morte tomou forma. Assombrava-o. Tinha medo de morrer antes de amar. Tinha medo de ser morto. Tinha medo de ir pro inferno. Vez ou outra, chorava de medo de seus pais morrerem, outras vezes, desejava que morressem. Ah... a adolescência é a própria morte! Veio seu terceiro luto. Matar alguém dentro de si. Perguntou-se quantas vezes aquilo iria se repetir na vida e desejou morrer.

Vida adulta. A morte agora era branda. Entendeu que era o ciclo natural da vida. Morrer aos poucos todos os dias. Agora tinha as chaves de casa. Mas não tinha as chaves de seu coração. Coração povoado de moribundos e cadáveres, um verdadeiro cemitério de ilusões desfeitas. Morava sozinho. Nem sempre a vida era como ele imaginava. Mas nem por isso desejava morrer. A idade agora lhe mostrava que por egoísmo preferiria morrer antes de seus pais, mas por heroísmo, tinha que morrer depois deles.

Por egoísmo, também preferiria postergar um pouco mais a morte pra aproveitar mais a vida. Mas esse não era seu caso. Antes a dor do luto que a sensação de uma manhã vazia. Evitava acordar cedo aos fins de semana para não ter um longo dia de solidão. Era difícil conviver com aquelas lápides dentro de si. Aquilo o gelava de dentro para fora. Parecia um morto. É isso que a vida faz: Te mata

lentamente...

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Macaréu

Foto/Reprodução: Instagram

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sm Grande vaga que, na foz de alguns rios, anuncia o começo da preamar.
 
Colocou os óculos escuros. Há tempos não se perguntava se devia ir ou ficar. Pedro tinha sérias dificuldades em perdoar. Você acredita que há limite entre o amor e a loucura? Pedro não. A dificuldade começa pela falta de consenso sobre o que é loucura. O amor é consensual, a loucura não.

Pedro estava indo de encontro ao seu maior medo. Sua pior/melhor lembrança... Ele hesitava, já fazia um bom tempo que não se viam... Enfim, ele domou o medo e foi, afinal, já se considerava lúcido o suficiente... E jaz aí, mais um conceito em que Pedro cansava-se de seu bom senso e pedia a Deus pelo senso comum.

Ao chegar à avenida, o primeiro ônibus a passar não lhe servia, e ele já começou a pensar que fosse um sinal de que não deveria ir. Embora nada supersticioso, Pedro buscava justificativas para não se sentir tão covarde. Mas antes que concluísse este pensamento, passou um ônibus que o levaria de encontro a si mesmo.

Ele subiu a ponte que sobe todos os dias para ir ao trabalho. Passou sobre aquele rio fétido, podre, mórbido. Se perguntava se aquilo tinha fundo. Passou, fechou os olhos e prendeu a respiração. Dizem que assim você pode ter a impressão de que o tempo está passando mais devagar. Mas até quando Pedro conseguiria postergar seus sinais vitais e o ponteiro do relógio?

Desceu do ônibus. Mais 100 passos para dois anos de culpa. Não é uma boa ideia, ainda posso desistir - pensou. A angústia foi tomando cada vez mais espaço dentro de si até que se tornaram um só e antes que novamente adoecesse deu o primeiro passo.

Lá estava ela. Bem mais bonita que há dois anos. Foi com as pernas moles e o coração duro. Abrir um sorriso? Dar um abraço? Apertar suas mãos? Ou selar um beijo no rosto? Três anos na mesma cama era agora como o sol e o mar que jamais se tocaram. Parou diante dela e disse: Oi.

Ainda não entendia o motivo daquele encontro. Mas pra que buscar motivos agora pra uma vida que nunca teve razão? Passava o dedo na mesa molhada pra ter certeza de que aquilo não era ilusão. Ela parecia tão bem. Sorria. Você está mais magro. Está no mesmo trabalho? Terminou a faculdade? Vontade imensa de ser grosso, responder-lhe que não tinha mais nada com sua vida e que ainda não se conformava de tê-la ido encontrar.

Mas ele precisava daquilo. Era preciso saber até onde aquilo o impedia de continuar. Resolveu fazer o melhor de si como se aquilo fosse uma nova conquista. Como se estivesse conhecendo alguém. E estava. Eles não eram mais os mesmos. Era como o Blood Mary que ela tomava e seu Curaçau Blue. Não combinavam.

Aos poucos foi se soltando. Percebeu que tinha vivido algo sozinho. Que havia culpado alguém por uma loucura que era só sua. A angústia foi virando lucidez e a loucura foi virando saudade. Por fim, sorriu. Descobriu que loucura passa. Amor não.

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sm O encontro das águas do Rio Amazonas com o mar chama-se Pororoca. Esta é uma grande onda de maré alta que, com ruído estrondoso, sobe impetuosamente rio acima, apresentando uma frente abrupta de considerável altura, perigosa à navegação, e que depois de sua passagem forma ondas menores, os banzeiros, que se quebram violentamente nas praias; macaréu.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Uma carta à Loucura

Foto/Reprodução: Instagram

Preciso de uma dose de loucura. Alguém tem uma garrafa dessas sobrando em casa? Eu não consigo viver do que é palpável... Sempre tive bons amigos que me seguraram nas curvas dos meus devaneios. Me espanta o fato de que agora eles são os primeiros a me incentivarem a me jogar do precipício.

Sempre achei que no meu círculo social só apareciam pessoas exóticas... designers, poetas, putas, neuróticos... Sempre me diverti com eles. Putas também amam e loucos também podem ser boas pessoas. No fundo eu sou um pouco de tudo isso, sou um pouco de todos eles. A verdade é que ninguém é influenciado por aquilo que não temos uma "tendência" a nos tornarmos... Atraímos aquilo que nos faz bem. Ou não.

Deixei nas mãos dos meus amigos a minha loucura. Cada um guardou um pedaço dela pra que ela não me destruísse... Mas acho que eles acabaram bebendo um pouco dela também. Os vejo mais loucos que eu. Eles, que eram minhas rédias e meu cinismo diante de minhas próprias ilusões. Devolvam minha loucura! Vocês querem me empurrar guela abaixo o que um dia já foi meu. Mas eu não quero isto que vocês estão me devolvendo. Isto agora é de vocês.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

E por fim, a sobremesa

Foto/Reprodução: Instagram

Oferta do dia: Romeu e Julieta 5,85. Bem casado 7,59. Esses malditos valores quebrados que tentam passar a impressão de que você pode pagar menos do que algo vale, quando na verdade pagamos muito mais do que aquilo nos custa...

Mais uma vez, o garçom retira os restos esfrangalhados da mesa. Pedaços mutilados depois de uma farta ceia. A mesa vai ficando vazia aos poucos... De tempos em tempos vem uma mão sem rosto retirando o que resta. Por fim, vão-se até as últimas migalhas.

A mesa fica limpa. Outro casal se senta e a mesa está novamente farta.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O salto

Foto/Reprodução: Instagram

Um dia eu perdi o medo de voar, resolvi saltar de asa delta. Eu não conhecia o instrutor, mas ele me olhava de uma forma que eu não precisava temer. O risco era alto... Na subida me passavam mil coisas pela cabeça, percebi que teria que ser na impulsividade, porque a dúvida vez ou outra pairava entre os pensamentos, e a ingrata me excitava... Antes de me jogar, sem que ele precisasse me dizer, eu sabia que não era certo onde iríamos pousar, havia apenas a previsão de um ponto quase incerto em que iríamos nos despedir. Eu tive que correr para dar impulso e nessa hora foi preciso muita coragem pra tirar os pés do chão. De repente, ele não estava mais sob os meus pés... Eu demorei pra soltar os braços e a surpresa de não ter onde me segurar me impediu de sentir o vento no meu rosto logo no começo. Ele continuou sendo um desconhecido mesmo tendo compartilhado comigo um momento em que eu senti quase todas as emoções possíveis naquela hora: medo, euforia, ansiedade, liberdade, angústia, êxtase... Perto de chegar do chão, eu percebi que tinha deixado um pedaço de mim diluído no ar e que tinha trazido um pouco de alguém que eu continuava sem saber quem era. Que agora me despertava uma curiosidade melindrosa e uma saudade distante quase sem lembranças. Ao tocar a terra firme, minhas pernas estavam trêmulas e eu não tinha mais uma mão pra me segurar... Eu olhei pra cima e não consegui me ver e até agora não sei onde descemos, só de onde saltamos...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Eterno Retorno

Foto/Reprodução: Instagram

Eu vou me encontrar onde eu me perdi. Cada dia que passa eu tenho mais certeza de que estou caminhando pra mim mesma, não apenas como autoconhecimento, mas como o encontro de alguém que se perdeu no mundo e pelo mundo. Eu só me enxergo quando estou de fora porque no espelho eu sou aquilo que quero projetar... A verdade é um pouco mais complexa de se alcançar. É uma catarse de Édipo todos os dias para os que tem coragem e vontade de procurar...

Nesse ponto, vejo como a literatura clássica é sábia. Como a mitologia revela a alma humana de forma simples e por metáforas que me fazem entrar em êxtase. E o êxtase acontece quando meu olhar persephiano sobre o mundo é uma eterna primavera... Identifico cada dia mais, episódios de uma epopeia em minha vida singular, cenas de tragédia nos meus dias tão simplórios e completas peças de comédia no meu tropeçar. As dualidades são expostas e os traumas entendidos.

Com o passar dos anos vamos percebendo e identificando como os velhos ditados fazem sentido na nossa vida. Depois de muito caminhar, conseguimos enxergar uma estrada inteira e só aí entender o sentido de cada passo que no início parecia controverso, duvidoso, arriscado e sem direção. Cada dia que passa, enxergo mais a vida como um ciclo. E enquanto não fechamos todos os ciclos não é possível sair da rotatória. A vida o fará andar em círculos até que o aprendizado se concretize. E não falo aqui de Deus, ou mitologia, ou astrologia, ou qualquer coisa "do além". A metáfora do texto é apenas uma forma de contar a vida de uma forma mais poética. Porque é disso que a vida precisa, uma dose de poesia. Porque a vida nada mais é do que o quanto de metáforas podemos criar com a linguagem.

A vida é simples, bonita e um tanto perigosa pra quem acha que sabe viver. E aqui mais uma vez não se trata de um conselho de mãe que diria pra não dirigir bêbado, mas apenas pra alertar que todos erramos e que todos pagaremos pelos nossos erros e não como forma de castigo divino, mas porque toda ação gera uma reação, e por isso, as consequências são inevitáveis. Talvez as consequências sejam "amenizáveis", mas o importante mesmo do aprendizado da vida não é não errar mais, mas saber lidar com o erro, até porque, erro é um conceito que depende muito de situação, realidade, cultura e condições. E muitas vezes a dúvida que gera o erro é o que mais nos excita...

Se tornamos os momentos mágicos ou se de fato há magia nesse mundo, eu não sei... Eu me sinto livre... Vou trilhando conforme as sementes que deixo por aí, porque ninguém colhe aquilo que não plantou... Meu olhar persephiano agora vê a primavera, sente a brisa... porque a magia está simplesmente na entrega de sentir o mundo simplesmente pelo que ele é... Eu respiro fundo... abro os olhos e é primavera... Nesse ponto, em que enxergo cada vez mais o início da rotatória com mais nitidez, só posso esperar que envelhecer realmente é algo prazeroso para a mente. Por mais que o mundo se torne mais nítido e por isso mais "sujo", o medo, a insegurança e a incerteza são cada dia menores.

Às vezes me pergunto se em algum ponto, os círculos se encontram, e é claro que não tenho resposta. A sensação de pensar nisso é como um quê de nostalgia... Rodando em círculos, passando por pontos que parecem já percorridos mas com novas sensações, com sensações a menos e fica aquele gostinho de quero mais, seja como for... E perseguimos como palhaços correndo em torno de um carrossel sem nunca chegar ao final... mas sempre enxergando o início... e o início nos faz correr mais e mais para o final.

Enfim, é só mais um texto de alguém que busca um sentido para a vida todos os dias, e que o encontra nos mais singelos sinais de que a vida existe por si só, porque a busca é o sentido... A vida não precisa de corpo, matéria ou ser, ela simplesmente é e eu a deixo ser...